Marca Maxmeio

Postado às 08h05 DestaquePolítica Nenhum comentário

Crédito João Gilberto/ALRN.

“Direito à moradia adequada e aos territórios, contra os despejos” foi o tema central da audiência pública realizada, na tarde desta terça-feira (9), na Assembleia Legislativa do RN. Proposto pela deputada Divaneide Basílio (PT), o encontro objetivou dar visibilidade estadual e nacional às denúncias de violações de direitos humanos relacionados à moradia, a partir dos relatórios “Missão-Denúncia”. A referida iniciativa foi realizada em Natal, em junho de 2022, por entidades, redes e movimentos populares urbanos, para apontar casos e ameaças de despejo.

“O debate de hoje é a continuidade dos diálogos e ações que o nosso mandato vem realizando sobre a observância e o cumprimento do direito à moradia, principalmente em relação aos segmentos populacionais em situação de vulnerabilidade social”, destacou a propositora e vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos do Legislativo Potiguar.

Conforme justificativa da deputada, a partir de 2018, na capital do Estado, registrou-se um aumento significativo nos conflitos fundiários relacionados à revisão do Plano Diretor, principalmente nas Áreas Especiais de Interesse Social e nos territórios da pesca artesanal em área urbana. Além disso, as ameaças de despejo também foram potencializadas no período da pandemia, abrangendo áreas centrais e orla marítima, Ocupações e População em Situação de Rua.

Ao mesmo tempo, agravaram-se os conflitos no interior do Estado, envolvendo comunidades tradicionais da pesca artesanal e empresários do setor imobiliário, provocados pela atividade turística na região, além da questão das implantações de usinas eólicas no litoral norte do RN.

Segundo a representante do Projeto Motyrum Urbano, da UFRN, professora Maria Dulce Bentes, o objetivo da audiência é “que possamos nos reunir, dar publicidade e atualizar a agenda relativa aos despejos em Natal e na região litorânea, a partir da missão que realizamos em junho de 2022”.

De acordo com Maria Dulce, a missão é um instrumento de monitoramento para dar visibilidade a problemas de violação dos direitos humanos relacionados a moradia. “E ela busca não só denunciar, mas também promover incidências nas políticas públicas, com as reparações das violações. Daí a importância da Justiça aqui hoje, com o Ministério Público e a Defensoria”.

A professora esclareceu que a “Missão-Denúncia” foi uma realização conjunta da campanha nacional “Despejo Zero”, do Fórum Nacional de Reforma Urbana, do Conselho Nacional de Direitos Humanos, além de outras organizações nacionais e locais.

“E hoje nós vamos apresentar o relatório que foi feito a partir do que vimos em junho de 2022 e vamos atualizar a agenda, procurando saber o que houve de lá para cá. Queremos saber tudo que aconteceu, a partir das falas das pessoas das comunidades visitadas, como as populações em situação de rua, os integrantes das Áreas Especiais de Interesse Social, e os cidadãos das comunidades pesqueiras. Cada representação fará aqui o seu relato”, finalizou.

Carla Fabrícia Santos, membro do Centro de Direitos Econômicos e Sociais, do Fórum Nacional de Reforma Urbana e da Campanha “Despejo zero”, também fez parte da missão. Ela acrescentou que “a missão envolveu também o Conselho Nacional de Direitos Humanos, a plataforma Dhesca, a Aliança Internacional dos Habitantes e, localmente, com o Projeto Motyrum Urbano”.

“Essas missões-denúncia são uma metodologia da plataforma Dhesca que vêm sendo implementadas pelo Fórum Nacional de Reforma Urbana, a partir da pandemia, para ajudar na visibilidade dos despejos. Elas envolvem diversas ações vinculadas também à campanha Despejo Zero, com atividades de mapeamento, comunicação e incidência”, explicou.

Para Carla Fabrícia, os despejos não violam somente o direito à moradia, mas muitos outros, “e estão no arcabouço de uma desigualdade social que assombra as cidades brasileiras. Então, não é uma questão apenas do Judiciário, mas também do Legislativo e Executivo, pois é questão de política pública”.

Segundo ela, a missão em Natal e nas comunidades litorâneas envolveu muitas trocas de informações. “Nós visitamos e conhecemos diversas realidades, principalmente as comunidades pesqueiras. E elas denunciaram, de forma mais marcante, a questão da energia azul e a não consideração das suas questões culturais e sua relação com os territórios. É uma luta linda das mulheres, que estão reivindicando o seu território, denunciando inclusive questões ambientais”, alertou.

A respeito da população de rua, a representante do Fórum Nacional de Reforma Urbana enfatizou que foram presenciadas “questões muito absurdas sobre direito à moradia”. “Surgiu até uma expressão, infelizmente, que é ‘o despejo dos despejados’. A gente sempre comenta que o ser humano precisa de coisas básicas que sustentam sua vida, como a alimentação, o ar e a água. Ao lado deles está o abrigo. E o despejo dos despejados viola todos esses direitos. Isso foi muito chocante”, complementou.

A coordenadora do Comitê em Defesa do Território Pesqueiro da Comunidade Praia de Enxu Queimado, Leonete do Nascimento, expôs que o maior desafio do seu grupo é enfrentar a especulação imobiliária.

“Em 2019 e 2020, durante a pandemia, a empresa ‘Teixeira 11’ chegou na comunidade e se disse dona de uma área de 184 hectares de terra, que incluía a nossa comunidade de Enxu Queimado. A partir disso nós, mulheres, criamos esse comitê e começamos a buscar apoio. Conseguimos muita ajuda na universidade e com as deputadas Isolda Dantas e Natália Bonavides. E nós vencemos quatro processos”, celebrou.

Em seguida, a coordenadora disse que a luta ainda não acabou, pois ainda existem processos tramitando na Justiça, requerendo a propriedade das terras da sua comunidade. “Depois veio outra empresa, Hotel Genipabu, com a mesma documentação e querendo tomar nossas terras. Então, a nossa luta é contra essas duas empresas, pela garantia do nosso território. Ganhamos algumas causas, mas não estamos seguros, porque ainda cabe recurso. Portanto, nós pedimos às autoridades que nos ajudem a regularizar nossas terras, pois já conseguimos provar que temos função social. Nós precisamos muito do nosso território, porque é dele que vem o nosso sustento”, concluiu.

Para o representante do Movimento Nacional de População em Situação de Rua, José Vanilson Torres, os gestores públicos não os veem como pessoas, e sim, como moradores de rua. “Eles tentam nos oprimir, dizendo que somos minoria, e não nos dão o apoio necessário, não nos tratam com dignidade. A frase ‘despejo dos despejados’ diz tudo. De 2020 para cá, no Viaduto do Baldo, nós sofremos mais de dez despejos pela Prefeitura de Natal, ignorando a legislação implantada em 2021. Chega de negligência. Nós não estamos pedindo favor. É um direito constitucional. Então, nós esperamos que o Município faça o seu papel e cuide da sua população, porque todos somos cidadãos e temos os mesmos direitos”, criticou.

Matheus Felipe Querino, integrante do Movimento de Luta dos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), começou sua fala ressaltando que o MLB atua em Natal há 19 anos, desde a ocupação em Leningrado, em 2004. “E essa missão do ano passado foi muito importante, pois não podemos nos esquecer que mais de 100 mil famílias do RN ainda não têm seu direito à moradia digna. E nós temos centenas de milhares de potiguares enfrentando fome e desemprego. Por isso, é muito relevante destacarmos as lutas dos movimentos sociais, como o MST, o Pop Rua e o MLB, para transformar de fato as grandes cidades”, frisou, acrescentando que é preciso que os movimentos sociais continuem se unindo, levantando a bandeira da Reforma Urbana e lutando por um País que seja, de fato, do povo pobre e trabalhador”, finalizou.

Na sequência, o morador da Área Especial de Interesse Social de Mãe Luiza, José Humberto, externou que desde 1994 vem sendo discutida a regularização das AEIS na cidade, e a única regulamentada foi a de Mãe Luiza.

“E como nós conseguimos isso? Não foi fácil. Mesmo sendo tão importantes para as comunidades, as AEIS não são reconhecidas pelo Poder Público nem pela especulação imobiliária. É preciso mobilizar toda a comunidade, a Câmara Municipal e confrontar a classe empresarial do ramo imobiliário. Por isso que as outras áreas estão encontrando dificuldades. Mas nós vamos nos juntar cada vez mais a elas e fortalecer a luta das AEIS, para que todas consigam suas regulamentações”, disse.

Também presente ao encontro, o deputado estadual Ubaldo Fernandes (PSDB) iniciou seu discurso informando que o déficit habitacional do Rio Grande do Norte é de aproximadamente 147 mil residências.

“E aqui em Natal nós percebemos isso diariamente, com pessoas permanentemente nas ruas, sem um lugar para morar. Mas eu fico feliz em dizer que fui o autor de uma lei em 2021, em plena pandemia, que suspendeu todas as ações de despejo que tramitavam no Judiciário. Era um momento muito difícil. E o RN foi um dos estados pioneiros nessa medida”, destacou o parlamentar.

Ubaldo ressaltou ainda que tem abraçado a causa desde quando era vereador. “Eu sou defensor da regularização fundiária e contrário à exploração imobiliária nas AEIS, mas elas precisam ser regulamentadas. Inclusive, nós conseguimos recursos com o Governo Federal para que algumas áreas da região leste recebessem sua escritura pública, como Rocas, Santos Reis e Praia do Meio, pois são bairros centenários de Natal e precisam ter sua legitimidade”, concluiu.

Dando continuidade à audiência, Erica Milena e Pedro Lins, membros do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), e Raquel Maria, que faz parte do Instituto de Políticas Públicas da UFRN, apresentaram as recomendações da referida Missão-Denúncia.

“A partir das visitas que foram realizadas, a comitiva nacional colocou as seguintes recomendações, mas que não esgotam os esforços que são necessários e precisam ser institucionalmente articulados. Como recomendações gerais, temos a criação do Fórum Permanente de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos, Rurais e Territoriais, a ser coordenado pela Defensoria Pública do RN, da União e pelo Ministério Público; a elaboração de um provimento do TJRN para orientação dos juízes na perspectiva de garantia de Direitos Humanos nas ações possessórias e correlatas; e a elaboração de uma Política Estadual de Prevenção de Despejos e Remoções”, detalharam.

Dentre as recomendações específicas a certos grupos, foram citados que “a Prefeitura de Natal assegure o território pesqueiro de Ponta Negra; que o Município de Natal cesse imediatamente as abordagens violentas, as ameaças e os constrangimentos, além dos despejos à população em situação de rua; e que o Município mantenha os limites e parâmetros da AEIS Mãe Luiza”.

De acordo com o representante da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (Semurb), Thiago Mesquita, “é importante analisar profundamente o documento do Missão-Denúncia, a fim de verificar a viabilidade econômica das propostas levantadas”.

Ele falou ainda que “é uma inverdade dizer que as AEIS de Natal foram fragmentadas e prejudicadas. Nós temos 74 AEIs em Natal, mais que o dobro de João Pessoa, que possui população e condições econômicas parecidas com as nossas”, garantiu.

O membro da Semurb enfatizou também que “a secretaria irá regulamentar, de uma vez por todas, as nossas AEIs”. “Nós já temos um bom planejamento, que é o Plano Diretor. Então, com uma metodologia bem definida, nós conseguiremos regulamentá-las definitivamente, garantindo todo o cuidado com a especulação imobiliária. Nós queremos que essas áreas um dia avancem economicamente, em infraestrutura e que haja moradia digna para todos”, concluiu.

Já o representante do Governo do Estado, Pablo Lins, falou da importância da presença dos três Poderes na audiência pública, a fim de provocar a interlocução com a sociedade civil, a comunidade acadêmica e com os movimentos sociais, para chegarem juntos à viabilidade da moradia e habitação para aqueles que precisam e buscam. “Parabenizo a missão, porque ela trouxe um diagnóstico de alguns conflitos fundiários no âmbito de todas as regiões, na área pesqueira, rural e urbana. E isso é relevante para que nós, que trabalhamos com habitação, possamos analisar onde o Poder Público pode melhorar e efetivamente trabalhar para cumprir o que está determinado em suas competências”, concluiu, enfatizando que o Estado do RN, ao longo dos últimos quatro anos, já regularizou 25 mil unidades habitacionais, no âmbito do Projeto de Regularização Fundiária Urbana.

A promotora de Justiça da Cidadania da Comarca de Natal, Danielle Veras, destacou que, durante a missão, conseguiu acompanhar e ouvir melhor os moradores, ficando mais familiarizada com os conflitos.

“A promotoria já vem acompanhando diversos casos relacionados, como Jacó e Mãe Luiza. Também estamos atuando em relação aos aluguéis sociais, que estão na fase dos recursos, quanto a valores e formas de pagamento. Sobre a população em situação de rua, o Ministério Público e a Defensoria ingressaram com ação judicial questionando seus despejos. Já aconteceu até uma audiência em que os moradores de rua foram ouvidos pelo juiz, e agora estamos aguardando a continuidade”, detalhou a promotora.

O juiz Carlos Wagner Ferreira, da Comissão Regional de Conflitos Fundiários da Justiça Federal da 5ª Região, confessou se sentir privilegiado “por participar deste encontro de vozes que muitas vezes são caladas ou inaudíveis por forças econômicas implícitas ou explicitas que esmagam o direito fundamental à moradia de muitas pessoas, que aqui estão na qualidade de representantes”.

A respeito do papel do Judiciário nas questões levantadas, o juiz disse que houve uma modificação na legislação em 2016, e o Judiciário investiu numa nova missão. “Até 2016, a lei brasileira não estava à altura da Constituição Federal, que garante a moradia como direito fundamental de todos. Após essa data, houve a mudança, e eu estou aqui representando uma nova Era do Judiciário, que paulatinamente vai povoar as discussões que vocês terão oportunidade de se deparar dentro dos processos que tramitam no Poder”, explicou.

Ainda de acordo com o juiz, o objetivo do Judiciário não é conceder decisões para despejar pessoas, mas conferir dignidade habitacional. “E como ele vai fazer isso? O juiz não deve conceder liminar, mas marcar uma audiência de conciliação, em que haverá uma escuta ativa com diversos membros da sociedade, inclusive o Poder Público, diretamente interessados ou não, e aquele grupo encontrará a solução”, destacou.

Ao final da audiência, a professora Dulce ressaltou pontos importantes a respeito da missão e do seu relatório. “Esse documento está muito longe de ser uma peça técnica ou acadêmica. Ele traz aquilo que cada um denunciou, para dar visibilidade às violações de um direito constitucionalmente garantido. Portanto, ele é uma ferramenta de luta, das defesas. E a Justiça, dentro de uma perspectiva humanística, vai saber usá-lo muito bem”, concluiu.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *